Quarta-feira, 31 de Março de 2004

SOBRE O MITO DA SENSUALIDADE AFRICANA

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Um dos mitos sexuais correntes é o de uma sensualidade africana que seria intrínseca e única e que é sobretudo dirigida sobre a mulher negra ou mulata. Segundo esse mito, as africanas teriam uma sensualidade congénita e à flor da pele, em contraponto com as europeias (estas seriam mais cerebrais, mais contidas e mais frias).

Nas minhas experiências de vivências esporádicas em África pude ver como este fenómeno é vivido por grande parte dos europeus lá situados e interessou-me a sua percepção. Até porque são eles os transmissores do mito.

Em Maputo, em Luanda, no Mindelo e na Praia, tive acompanhamentos e incentivos adequados para conhecer os caminhos da tal sensualidade especial da negritude feminina. Aliás, este tipo de ronda pela sensualidade africana faz parte do cardápio infalível da arte de bem receber o patrício macho.

Vi homens, mulheres e casais com a sua vida afectiva normalizada que olham para o folclore sensual com sorrisos condescendentes.

Mas vi, sobretudo, uma enorme legião de desprotegidos de afectos isolados em África, com dinheiro para gastos, a consumirem uma sensualidade proposta, oferecida a troco de muito pouco mas sempre disponibilizada a troco de alguma coisa.

Vi directores gerais de grandes empresas europeias a babarem-se com a lascívia representada na dança de jovens adolescentes à procura de algo que lhes matasse a fome ou lhe desse acesso à satisfação de adornos ou vestuário.

Não me esqueço da imagem de um director português de uma marca de automóveis japoneses em Luanda, um tipo de mais de sessenta anos de idade, pouco passando do metro e meio de altura e com uma careca luzidia que esgotava as noites a dançar frenético, escolhendo sempre, como parceiras, as africanas mais altas. Depois, a troco de pagar bebidas e dar gorjetas, o director endinheirado, careca e dançarino, metia o nariz dentro do decote africano, fincava as mãos na bunda da moça e rodopiava toda a noite em meneios sensuais como se fosse um autómato teleguiado. Parecia uma cena de um filme de Fellini para o caso de ele ter filmado em África.

Estive numa discoteca in em Luanda, onde havia uma sequência de blocos divididos em duas partes. Na primeira, as moças (e estamos a falar de grupos onde dominavam os treze a dezasseis aos de idade, as chamadas “catorzinhas”), dançavam frente a um enorme espelho em meneios competitivos. Depois de se exibirem, as mocinhas sentavam-se e passava-se à fase das danças por pares. Então, os europeus iam direitinhos àquelas cujos meneios mais lhes tinham agradado.

Constatei, em Maputo, a facilidade com que jovens que trabalhavam em restaurantes se deixavam arrastar para ganhar extras a fazer companhia de dança em discotecas. E ali ouvi, com os cabelos em pé, europeus a gabarem-se que se conseguia uma adolescente africana pelo pagamento de um frango assado.

Indignei-me com a condescendência da burguesia negra para com estes fenómenos que não representam mais do que uma oferta de prostituição de facto ou mitigada para com os antigos e novos colonos. Percebi rapidamente porque é que as nomenklaturas da Frelimo e do MPLA fecham tão candidamente os olhos a este fenómeno que reproduz o pior daquilo que foi o colonialismo (em termos de exploração sexual das jovens africanas). É que grande parte dos velhos chefes da guerrilha e os generais encartados do sistema gostam do mesmo e não perdem ocasião de se exibirem pelas noites de Luanda e de Maputo com uma nova “catorzinha” à sua trela. Como em tudo, os frelimistas e o mepelistas persistem em imitar e prolongar o pior que o colonialismo legou àqueles desgraçados povos. Este é o drama. O resto é o mito.

Substitua-se sensualidade por fome e encontramos o código que desmonta a lenda da exaltada sensualidade da mulher africana.





















publicado por João Tunes às 13:08
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SAIR DE TETE

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Tete é uma cidade incrivelmente quente e sufocante. E é (ou está) incaracterística e feia. Ali, a agressividade do sol não permite que se desdobrem nas ruas os vagares africanos. Tudo anda rápido, procurando sombra ou ar condicionado. Mas é muito povoada, porque se situa estrategicamente no coração da rota do Zambeze. Como em todas as cidades moçambicanas, a degradação das infra-estruturas e dos edifícios da urbe é acentuada e dá-lhe um ar de decadência que parece não ter retorno. Felizmente, a demora é curta e o regresso a Maputo está por horas.

Mas não se apanha um voo de Tete para Maputo assim com duas cantigas. A corrupção que corrói Moçambique e tantos outros países africanos, espreita a cada esquina. Sabíamos que ter bilhete de avião com reserva feita, não é prova segura de viagem garantida. O hábito é que um ou outro endinheirado sem reserva feita estenda umas tantas notas à balconista da LAM e passe a ter garantia de lugar. Convém, pois, chegar-se ao Aeroporto com bastante antecedência. A nossa carrinha circula devagar, a uns trinta quilómetros à hora, na estrada plana que liga Tete ao Aeroporto. O motorista explica que tem de ir assim porque ali a velocidade máxima é de quarenta quilómetros por hora. A meio do caminho, um polícia de farda branca e enorme boné manda-nos parar. Pede os documentos ao motorista e mostra um aparelhómetro mal definido (parecia um microfone de televisão, se calhar era mesmo) onde se acusaria excesso de velocidade pois estaríamos, segundo ele, a andar a sessenta quilómetros por hora. Gera-se o pandemónio com a vigarice e os possíveis efeitos do atraso mas o polícia não desarma e mostra inflexibilidade em não dispensar os proventos do dinheiro da multa. Às tantas, alguém mostra um cartão (de “patrocinador” da Polícia de Moçambique com foto, lista em diagonal, carimbo e assinatura) que assusta o homem e o leva a resolver deixar-nos seguir com o extra de direito a continência.

Na chegada ao Aeroporto de Tete, o temido confirma-se porque os nossos lugares (reservados e confirmados) já haviam sido transaccionados com uns negociantes indianos. Novo banzé, até que o desenrascado do cartão que intimidara o polícia de trânsito, invoca amizade pessoal com o Presidente da LAM e pede para lhe ligarem o telefone. Rapidamente tudo se compôs para evitar o indesejado telefonema. Os negociantes indianos foram repescados da sala de embarque e entrámos nós para ocupar os lugares a que tínhamos direito.

O fresco do turbo-hélice soube mesmo a fresco. Grande LAM.







publicado por João Tunes às 12:42
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Terça-feira, 30 de Março de 2004

AMOR NO REINO DA IGUALDADE

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O Engenheiro Raimundo é um moçambicano muito branco. Delicado, de cabelo loiro, olhos profundamente azuis, vagaroso nos gestos, reflectido nas falas que são medidas várias vezes antes de saírem transformadas em som. Mas sente-se tão moçambicano como os outros.

Nasceu na cidade da Beira, filho de pais de longínqua origem minhota. Ali foi menino e fez o liceu. A independência apanhou-o na força da juventude. Saudou a nova realidade e tornou-se activista da Frelimo. Colocou-se ao serviço da pátria emergente para o que desse e viesse.

Quando a Frelimo resolveu transferir a posse da Refinaria da Matola, em Maputo, das mãos de Boullosa para as das massas populares, tornou-se urgente formar novos quadros devotados ao povo que pusessem a unidade estratégica a funcionar e bem. Raimundo foi um dos escolhidos e seguiu com mais uma dezena de jovens moçambicanos para a Roménia tirar um curso de Engenharia de Refinação. Quando voltaram, a Refinaria não tinha aguentado a espera e tinha passado a monte de sucata sem préstimo nem retorno. Ainda hoje, Moçambique não tem refinação de petróleo e importa todos os derivados. E aquela dúzia de engenheiros refinadores espalhou-se por variadas funções e modos de vida.

Raimundo andou por Ministérios, ganhou os vagares e os tiques defensivos dos burocratas, até que arranjou um lugar como Director Comercial. Das vezes que estive com ele, deparava com um olhar que tinha uma tristeza como fundo e que me parecia a marca do desencanto recalcado.
No convívio, conheci-lhe a família que me deu guarida e companhia numa inolvidável visita ao Kruger Park na África do Sul e à sua casa de campo perto de Maputo mas já junto da fronteira com a Suazilândia. A mulher do Raimundo era uma romena de traços evidentes de cigana, exuberante e que se movia com um extraordinário à vontade nos meandros da luta pela vida nas carências e armadilhas da sociedade moçambicana. Tinha um casal de filhos sempre impacientes de conviver com os pais e que pediam meças à exuberância maternal. Formavam uma espécie de tribo barulhenta em que os silêncios, os vagares e os zelos do Raimundo se diluíam e pareciam fora do contexto.

Percorri, com o Engenheiro Raimundo, muitos quilómetros através de Moçambique. Só numa das vezes, saímos da Beira em jeep e percorremos dois mil quilómetros em estradas esburacadas, por Chimoio, Gorongosa, Tete, Songo e Cabora Bassa. Tivemos muitas noites por nossa conta que deu para falarmos e conhecermo-nos cada vez melhor. Na Beira, mostrou-me a sua antiga casa paterna, o liceu, os sítios onde brincou e os locais onde tinha feito as suas reuniões da Frelimo. Tentou fazer-me imaginar, sem saudosismo, através da cidade em ruídas, o que era a Beira colonial. Falou-me da sua vida e do enorme desencanto com o projecto falido de independência que afinal tinha tornado os moçambicanos dependentes da corrupção e do saque dos frelimistas.

Confidenciou-me a sua história de amor com a sua mulher Dolores. Conheceu-a na Roménia quando estudavam os dois na mesma Universidade. Apaixonaram-se e fizeram uma jura mútua de projecto de vida comum a ter lugar em terras moçambicanas quando terminassem os seus cursos. O banal entre dois jovens estudantes que se encontram e se gostam. Mas havia um problema, pior dois problemas: Dolores era militante da Juventude Comunista Romena e sair do país para casar com um estrangeiro era uma heresia e uma ingratidão para com a classe operária que sustentava as despesas do ensino para todos; Raimundo era moçambicano branco e casar-se com uma estrangeira europeia simbolizava um acto de rejeição da africanidade e traiçoeira para com os camponeses e operários moçambicanos que construíam o homem novo da nova sociedade moçambicana. Raimundo foi mandado, repentinamente, apresentar-se em Sofia na Bulgária às ordens da Embaixada de Moçambique. Por lá esteve, encafuado num hotel secundário, sem saber porquê e para quê. Um dia, recebe ordens de se apresentar na Embaixada e entra uma reunião que reunia todos os estudantes moçambicanos a estudarem nos países socialistas e presidida por um manda chuva da Frelimo. O mandarim abre a reunião e diz que há um traidor entre eles. Um estudante em Sófia vira-se para Raimundo e aponta-o como um renegado da africanidade. Aquilo era um julgamento expedito e devidamente encenado. Raimundo defende-se e diz que o amor não tem cor, nem fronteiras e, muito menos, uma pátria. Ele era e seria africano e moçambicano mas nunca renegaria a mulher que amava. Mandaram-no regressar ao hotel onde o esperava um bilhete de avião para regresso imediato a Moçambique sem que pudesse fazer os exames finais do seu curso. Voltou, revirou meio mundo durante um ano e acabaram por o deixar ir fazer os exames finais. Terminou o curso, aproveitou para se casar e, depois, tentou trazer a sua companheira consigo. Nem a Roménia autorizava a saída de Dolores nem Moçambique lhe emitia visto de entrada. Raimundo voltou a Moçambique e esperou dois anos mais para poder viver com a mulher com quem se casara, formando a sua família.

Raimundo contou-me a sua história porque se tinha tornado meu amigo. Vagarosamente, com uma tristeza que ia tomando cada vez mais conta dos seus olhos à medida que cada palavra golfava lá de dentro. Rematou a conversa, oferecendo-me o livro de memórias do Dr. Hélder Martins, um médico moçambicano branco que aderiu à Frelimo nos primeiros tempos de luta, tinha sido grande amigo de Samora Machel e Ministro da Saúde e penara as dores da africanidade vivida por brancos. Tirar esse livro da estante e relê-lo é uma forma que eu tenho de matar saudades do meu amigo Raimundo. E de saudá-lo por não ter desistido de amar contra os dogmas e a estupidez dessa malta que, um pouco por todo o mundo, promete igualdade mais homens e mulheres novinhos e novinhas em folha luzidia feitos depois de derreterem, como sucata, os homens e as mulheres que somos. Fingindo não saber que o melhor que conseguem os candidatos a engenheiros de almas é aumentar o peso da ferrugem, tal como os seus camaradas da igualdade fizeram com a Refinaria da Matola.

(reedição de texto já publicado na antiga morada do Bota Acima)
















publicado por João Tunes às 21:44
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LIBIDO A BRANCO E PRETA

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Aparício funcionava com a libido a branco e preta. Assim, sim. Não havia mulher africana que o não excitasse. Quanto mais preta, melhor. Preta e catorzinha, então o céu baixava à terra. Mulher branca deixava-o indiferente, mais frio que o gelo que ele só usava para fazer barulho agitando o copo de gin. Dizia ele, com ar de entendido dogmático, “mulher clara não sabe a nada”.

(Ah, é verdade, Aparício gostava de pretas e de gin. Este, explicava ele, era o melhor remédio “natural” para prevenir o paludismo.)

Chamar-lhe Aparício é assim a modos que uma falta de respeito. Já fora Major Aparício e depois, convertido à sociedade civil, tornou-se Doutor Aparício. “Licenciado em pretas de Maputo”, foi assim que ele se me apresentou.

Foi parar a Maputo ao serviço de uma consultora, por lá ficou como director financeiro de uma empresa portuguesa. Não tenciona voltar. Não falta nos provimentos para a mulher e os filhos em Lisboa. Não falha um mês de férias com a família. Mas nos outros onze meses do ano, ninguém o arranca de Maputo. Porque “não há pretas mais bonitas que as moçambicanas”.

O director-geral da empresa onde prestei serviço, um barrigudo careca e meu patrício do Douro, uma espécie de Buda da comunidade portuguesa de Maputo, estava instalado com a mulher e a filha. Lá teria os seus esquemas mas a posição de director-geral e de patriarca, não lhe permitiam folias expostas. Na segunda semana, achou que cá o mano não podia andar para ali desabonado e disse-me solidário “Oh engenheiro, você não pode sair daqui sem provar as moçambicanas, não me convém dar nas vistas, na quinta-feira vai sair com o Doutor Aparício que não há quem o oriente melhor.”. Os constrangimentos de serviço não permitem frontalidades de negas mal-educadas e estudar o Aparício interessou-me. Aliás, nem tive de dizer sim ou não, ele tinha falado, estava falado.

O Doutor Aparício apareceu-me no Hotel Rovuma ao princípio da noite, banho tomado, escanhoado e a cheirar a água de colónia. Jeep estacionado e amabilidade a puxar para o servil. “Então vamos lá, senhor engenheiro”. Eu fui, cumprindo, como ele, ordens do director-geral.

O jantar foi bom. Levou-me a um restaurante especializado em peixe, bem perto da Embaixada de Portugal. A conversa de acompanhamento não teve qualquer graça. Porque o obcecado do Aparício, passou o tempo todo a falar das delícias da mulher negra. Eu só dizia “pois” e lá tentava travar-lhe a pedagogia, informando o homem que tinha feito serviço militar na Guiné. Às tantas, vejo que os olhos do Aparício se cravam na linda empregada adolescente que nos servia à mesa. O homem parecia ter cola nos olhos. Comeu-se o peixe, bebeu-se o vinho, sorveu-se o café, tomaram-se os digestivos (e venha outro, e venha outro) e o homem, com a língua cada vez mais solta, não se desfazia da sua obsessão – preta para cá, preta para lá. Começou a dar-me o sono e a chatice. O restaurante desertificou-se. Ficámos nós e os empregados. Às tantas, o Aparício pagou a conta, trocando contactos de mãos com a empregada que lhe ficara no goto.

Saímos. O Aparício colocou o jeep mesmo à porta do restaurante e desligou. “Aguente aí, oh engenheiro, que esta está no papo”. Eu aguentei, é claro. Àquela hora, em que Maputo se torna perigosa, como ia atravessar a cidade até ao Hotel? A moça sai, o Aparício abre o vidro e diz-lhe “Anda!”. Ela hesita, ou finge hesitar, “vou apanhar táxi para casa, estou cansada”. E o Aparício, seco e corante: “Anda!”. E a empregada do restaurante sobe dócil para o jeep. Ranger dos pneus e ala para o “Sixty” (ou nome parecido). Sem voto na matéria (eu, como o Aparício, estávamos a cumprir ordens do director-geral), entro na discoteca escura e pouco frequentada. Poucos machos e muitas rapariguinhas aparentando entre os treze e os quinze anos. Todas conhecidas da empregada do Restaurante, porque todas se tratavam pelo nome e trocavam beijinhos. O Aparício trata de toda a logística, manda vir as bebidas e um grupo das “catorzinhas” e dispara-me “escolha lá, oh engenheiro”. Achei ser tempo de dizer basta. E disse para o Aparício: “desculpe lá, oh doutor, mas acha que tenho cara de pedófilo?”. O homem abriu a boca, espantado e desorientado. Parecia que nunca tal lhe tinha acontecido. Talvez não. Digo-lhe: “deixe-se estar que eu vou de táxi”. O Doutor Aparício, a contas comigo, com as “catorzinhas” e com as ordens do Director-Geral, diz “ora essa, quem o leva sou eu”. Levou-me, sem pio de fala, olhando de soslaio. Lia-se no seu olhar o pensamento contrariado: “agora, os gajos de Lisboa mandam para aqui engenheiros gays”. Deu-me uma enorme vontade de rir. Ri-me que nem um perdido até chegar ao Rovuma. O Aparício começou a ficar assustado. Não piava nem me olhava. Estacionou o jeep sob a protecção da branca Catedral. O Aparício ainda perguntou “Está tudo bem consigo?”. Então não havia de estar. Claro que estava. Conhecia melhor Maputo depois de conhecer o Aparício. E nunca pensei que o jantar de peixe me desse para tanto riso.















publicado por João Tunes às 20:15
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ADEUS CAHORA BASSA

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Parece estar na hora de entregar a Barragem de Cahora Bassa aos moçambicanos. Esse será, talvez, o principal motivo que levou Durão Barroso a Moçambique.

O projecto da construção da Barragem e o início da sua construção deram-se no momento errado e por motivos errados – o colonialismo português estava na sua fase derradeira e a obra pretendia ser o grande trunfo para que ele perdurasse. Alimentou-se a ilusão de que, não se conseguindo vencer a Frelimo pelas armas, a iríamos vencer com a barragem que, além do mais, iria irmanar os interesses coloniais portugueses e os regimes racistas da África do Sul e da Rodésia/Zimbabwé.

Paralelamente, a Barragem é uma das mais prestigiosas obras da engenharia portuguesa em todo o mundo.

A finalização da obra foi fruto da inércia da presença portuguesa em Moçambique e da teimosia de não deixar uma obra vultuosa a meio.

O grande beneficiário de Cahora Bassa foi a África do Sul. Pagou tarifas miseráveis e Portugal foi acumulando um serviço de dívida monstruoso. Aliás, julgo que parte da energia recebida pela África do Sul é depois re-exportada para Moçambique, sobretudo para servir o monstruoso empreendimento da Mozal (fábrica de alumínio deslocalizada para Moçambique pelos seus efeitos poluidores e por acesso a mão-de-obra mais barata).

A dívida de Cahora Bassa e a dificuldade de cobrar as dívidas da energia exportada e obter um preço justo para ela, foram sempre argumentos favoráveis aos defensores da passagem da Barragem para as mãos dos moçambicanos. Era e é um “cancro financeiro” que suscita a vontade imediatista de estancar aquilo que até agora só foi visto como um enorme encargo para o Estado português.
Pina Moura, quando Ministro da Economia, já lá tinha estado com a missão de se “ver livre” de Cahora Bassa. Voltou atrás. Provavelmente, Durão levará agora essa tarefa liquidacionista até ao fim.

A “moçambicanização” de Cahora Bassa é uma treta mal contada. A saída de Portugal de Cahora Bassa levará, a curto prazo, à substituição do seu papel por parte da África do Sul. Salta à vista. Em vez de “moçambicanização” da Barragem teremos é Moçambique mais (ou definitivamente?) “sul-africanizado”.

Não tenho dúvidas que é o momento errado para sairmos de Cahora Bassa. Mas o espírito mesquinho de ver a nossa presença em África em termos de mera tesouraria dá nisto. Somos capazes de perdoar dívidas, alimentar corrupções, esquecer afrontas, mas falta alma para rentabilizar uma obra única e estratégica no cone sul de África. E depois o que nos restará em Moçambique? A língua portuguesa? Não me façam rir.
















publicado por João Tunes às 01:15
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Segunda-feira, 29 de Março de 2004

O mundo é grande

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O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

(Carlos Drummond de Andrade)








publicado por João Tunes às 16:43
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SOBRE O NEO-LIBERALISMO

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O traço mais marcante que o neo-liberalismo trouxe para a política foi comparar as sociedades às empresas, defendendo que a governação deve aparentar-se, o mais possível, com a gestão das empresas.

Se o liberalismo defendia a não intromissão da política na economia, não beliscando a santa liberdade do mercado, agora defende-se que o Estado deve deixar de ser Estado. Em nome de quê? Da eficiência. Porque, dizem, o Estado não sabe gerir.

Hoje, a primeira função de um Ministro da Saúde é privatizar hospitais. Um Presidente da Câmara moderno deve entregar os serviços camarários ao outsourcing. Já se ouvem uns zunzuns que também as Cadeias, as Polícias e os Tribunais para aí deviam caminhar.

Depois, em cúmulo, chegaremos à privatização do Governo e da Política. E os Gestores já andam para aí a movimentarem-se para definir as regras da grande política (lembramos todos o célebre “Compromisso Portugal” do Convento do Beato).

Destas artes, o Estado vai-se demitindo do sentido social e da sua função reguladora e equilibrante. Tudo passa a ser visto como custos, receitas e resultados. Exactamente no momento em que as Empresas transformam diariamente milhares de trabalhadores em excluídos.

Os grupos económicos depois de afastarem o Estado da regulação da economia, preparam-se agora para o tomarem como agência de novos contratos. Porque ele passou a ser visto como um mero elemento de mercado.

A social-democracia é cúmplice deste baquear da função social do Estado porque foi tomada de pânico e inacção perante a sua função fundamental de evitar que a “economia de mercado” se transforme em “mercado da economia”. É exactamente neste ponto que as populações quase não se apercebem da alternância direita-esquerda. Porque, nos seus históricos traços distintivos, a direita é direita e a esquerda é direita. Apenas, quando os há, temos uns pós de “sensibilidade” assistencial com os “mais desfavorecidos”. O que é pouco, ou quase nada, perante as suas responsabilidades.













publicado por João Tunes às 00:39
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A MODA DA GESTÃO MONÁRQUICA

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Pelos vistos, as grandes empresas estão a ser contaminadas pelo espírito monárquico.

Já tínhamos o Presidente da PT promovido a Barão da Horta e da Costa, por graça de Dom Duarte.

Agora, a fúria monárquica também chegou à Galp. Segundo o “Jornal de Negócios” (do dia 23), cinquenta quadros superiores desta Empresa foram graduados em sucessores dos Administradores em exercício, constituindo “uma elite que tem de estar preparada para, a qualquer momento, substituir o Presidente da Comissão Executiva”. Assim a modos que um grupo de “clonos de António Mexia”, ou uma espécie de Câmara dos Lordes da Gestão da Petrolífera. O problema é se a distinção sobe à cabeça, e ao mesmo tempo, dos cinquenta Lordes e todos querem o lugar do Presidente. E nós (pobres plebeus) a pensarmos que quem escolhia os Administradores das Empresas eram os Accionistas…





publicado por João Tunes às 00:09
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Domingo, 28 de Março de 2004

PENSANDO SOBRE A AMÉRICA E O ANTI-AMERICANISMO

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As Administrações americanas deram, dão e continuarão a dar (com Bush ou com Karry) motivos de sobra para desagrado e revolta. O típico comportamento imperial dessas Administrações não poderia dar outro resultado. O fenómeno da aceleração da globalização económica e o carácter unipolar do domínio, ajudam à festa

Passarão ainda muitos anos até que as relações entre a América e os outros países, regiões e continentes se façam numa base de respeito e reciprocidade. Assim, vão perdurar os sentimentos fragmentados entre a desconfiança e rejeição e a submissão pelo encosto ao mais forte.

Por exemplo: Enquanto as Administrações americanas persistirem em não “domesticarem” o belicismo israelita, elas não têm hipótese de serem aceites no mundo árabe.

Já quanto à Europa, o problema parece-me diferente. Independentemente do que façam as Administrações, o sentimento anti-americano está de tal forma enraizado entre os europeus que o problema se resumirá sempre a escolher o pretexto para a motivação da alergia.

Razões objectivas: Porque as empresas americanas são mais fortes que as empresas europeias. Porque a tecnologia desenvolve-se a uma velocidade nos EUA que não tem paralelo na Europa bem como a incorporação das novas tecnologias em produtos vendáveis. Porque os EUA têm mercados e acesso a matérias-primas em grande superioridade. Porque os EUA reforçam permanentemente sua agressividade competitiva pela incorporação de novas levas de imigrantes ávidos de ganharem dinheiro em curtos espaços de tempo. Porque o marketing é americano ou pouco o é.

Razões subjectivas: As actuais gerações ainda não fizeram o luto da rivalidade bipolar EUA/URSS e do desaparecimento do comunismo. Sem Marx, nem Lenine, nem Trotski, nem Mao, sem a crença redentora num “futuro melhor”, sem alternativas de voltar a dar o primado do social sobre o político e o económico, o que resta? Sentimentos de perdas de esperança, de valores, de ideais e de defesa. Enfim, sentimento de perda de futuro. Caído um dos pólos de “governo do mundo”, sobra o outro. E que outro! Vitorioso, forte, poderoso, agressivo, guerreiro. Como admirar que o Anti-americanismo seja o santo e a senha dos órfãos da esperança? Em vez de um ideologia redentora, fica essa ideia simples e ressentida: a culpa, toda a culpa, está na América. Não é preciso pensar mais, questionar mais, informar mais. Foram-se as ideologias, sobrou a ideia, e a preguiça, de um partido simples e garantido. Se o Bem não existe nem parece que venha aí, então fiquemos pelo ódio ao Mal. E o Mal tem nome. Chama-se América, ponto final.

O problema maior é que, enquanto esta obsessão (e esta aversão) for a Ideia que resta aos europeus e que os guia, a América será sempre mais forte e dominadora. A dualidade tenderá a permanecer: haverão sempre manifes anti-americanas, a opinião pública e os parlamentos escutarão milhares de denúncias sobre o abuso americano, o sentimento de aversão perdura no cidadão comum, mas (MAS) a economia continuará a esmagar o social e o político e as regras e grandes decisões da economia continuarão a ser americanas. Perante isto, aos americanos só lhes resta terem poder de encaixe para lidarem com gentes que não gostam deles, quanto ao resto, eles (e os seus neo-liberais espalhados pelas sete partidas) continuarão na maior.

A alternativa ao anti-americanismo que prolonga o domínio americano estará (estará mesmo?) na construção de projectos políticos que conciliem o social com o económico (assente num modelo de desenvolvimento sustentado), construindo uma alternativa ao modelo americano de poder empresarial monárquico e do primado absoluto da finança sobre a economia e da economia sobre a sociedade. Este já foi o projecto social-democrata, perdido com a conversão acelerada dos sociais-democratas ao liberalismo. Haverá força para o retomar e dar-lhe vida política? Tenho dúvidas mas ainda me sobra uma réstea de esperança.















publicado por João Tunes às 02:06
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Sábado, 27 de Março de 2004

SOBRE O ARTISTA DO VOTO EM BRANCO

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Não. Não vou falar sobre o Escritor. Porque não me sinto à altura de falar sobre um Nobel. É mesmo, perante um tamanho laureado, a minha timidez atávica vem-me ao de cima. E o respeito é uma coisa bonita.

Não. Não vou falar sobre o seu último livro. Apenas porque ainda não o comprei e não o li. Lá me chegarei a seu tempo, de acordo com a gestão dos euros disponíveis.

Não. Não vou falar sobre a pessoa. Porque não o conheço pessoalmente e, assim, inibem-se os juízos.
(Estive por um triz para o conhecer. Corria a década de oitenta do século passado. Ele era um dos inspiradores da dissidência da Terceira Via. Foi marcada reunião magna de conspiração na Biblioteca do ISEG, arranjada pelo Prof António Mendonça. Daí sairia a decisão de avançar com o efémero INES. Presentes alguns célebres conspiradores – António Graça, Raimundo Narciso, Miguel Portas, Pina Moura, Fernando Castro, Judas, António Hespanha e mais uns tantos “da base” que me incluía. Saramago não apareceu. Tinha “borregado”. E regressado à velha ortodoxia. Constou-se, depois, que uma conversa “face to face” com Cunhal tinha pacificado as suas divergências.)

Não. Não vou falar sobre o político. Porque ainda não vi bem contada a história do DN. Porque me lembro que ele abandonou a Presidência da Assembleia Municipal de Lisboa por discordâncias com o PCP. Porque ele é quase sempre (voltará a ser?) um eterno candidato não elegível pela CDU. Porque foi amigo de Fidel e depois disse “basta yá!”. Porque não o entendo, confiando que ele se entenda.

Então vou falar sobre o quê?

Pois vou falar sobre o Artista. Porque Saramago, além de escritor e político, é um Artista. Boa figura, pose assumida e com cambiantes de actor emérito, rosto e mãos fotogénicas, andar firme e imponente, frio e calculista, mulher bonita ao lado, mestre de marketing.

O Artista Saramago sabe como se vendem livros (quando se esquece, lá estará o Zeferino da Caminho para o ensinar). Há que estabelecer frisson previamente. Haja polémica antes de o ler para que se compre para o ler ou não o ler. Porque ninguém quererá passar ao lado de uma heresia ou de um escândalo. Dezenas de entrevistas, fotos a rodos, burguesia monopolista da comunicação aos seus pés, cada capitalista gordo e safado a mandar um dos seus jornais, revistas ou televisões rogar-lhe o privilégio de uma frase que faça cacha. O resto fica por conta da FNAC.

Porque o Artista Saramago compreendeu que um escândalo à posteriori (caso do Evangelho) vende mas não vende tanto como um escândalo à anteriori. Nada como aprender com a experiência.

Qual a ideia que o Artista Saramago desencantou desta vez para que o escândalo não falhe à volta da venda abundante do seu novo livro? Simples, tipo Ovo de Colombo: o que seria da Democracia se o voto em branco fosse maioritário? Nem mais, nem menos. Apenas.

Em abono da verdade, o coelho da cartola não é assim tão novo ou surpreendente como parece à primeira vista. O desconforto com a democracia é tão velho como a própria democracia. Ideologias simétricas governaram a Europa décadas a fio nesta base de insatisfação com o poder democrático. Esta ideia peregrina de sabotar o sistema de voto pelo “anti-voto” não é mais que uma redenção utópica e de sublimação de um poder desejado e frustado por outra legitimidade (os sovietes, pois então) de que se perdeu a esperança de reinar por vontade dos homens.

O que é espantoso é que a respeitável saudade política de um escritor laureado, transformado em Artista, resulte em pleno. Tiro o chapéu ao Marketing. Perante ele, o que somos nós, pobres consumidores leitores?






















publicado por João Tunes às 01:47
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