Tenho, como outros tantos muitos mais, os sons da guitarra de Paredes dentro da alma. Não preciso de lhe ouvir o disco ou escutá-lo na rádio ou na televisão. A música de Paredes, os sons de Paredes, habitam em mim. É em grande medida por causa disso que nunca conseguiria deixar de ser português. Mesmo que o quisesse, porque os sons de Paredes não deixavam.
Durante anos, em Benfica, fui vizinho de bairro do Carlos Paredes. Habituei-me a vê-lo passar, sempre distraído, sempre desconjuntado no andar, sempre afável naquelas mãos enormes que se destacavam no corpo, sempre gentil e modesto de meter raiva. Cumprimentava-o em voz baixa e rápida, eu não queria incomodar os sons que eu imaginava estarem em jogo de combinação dentro daquela cabeça de homem bom e com talento transbordante. Ele respondia com um sorriso de menino, chamava-me de amigo, tentando não tropeçar com os pés num qualquer obstáculo porque toda a concentração e vida subia-lhe para a cabeça e para as mãos.
A notícia da sua perda física não me impressionou nem chocou, apenas me deixou uma nota especial de ternura para com este homem que deu som à qualidade de se ser português. Mais ainda que o fascismo, mais ainda que o desprezo que remeteu este homem, anos a mais, a desperdiçar-se a ganhar a vida a arquivar radiografias num hospital, enquanto ele não devia fazer mais nada que tocar, tocar, a vida foi cruel, demasiado cruel, para com este génio. Remetendo-o para a doença e para a inanidade, durante tantos anos, tirando movimento às suas mãos, a vida foi filha da puta para com Carlos Paredes. Não sei mesmo de que é que ela se quis vingar com o tanto mal sádico que lhe fez. Ele não merecia. A vida não mereceu Carlos Paredes. Finalmente, deixou-o em paz. E eu fiquei numa paz triste.
A vida não nos tira os sons de Paredes. Valha-nos isso. Assim, mesmo sem Paredes, com os sons de Paredes, podemos continua a viver.