Domingo, 18 de Abril de 2004

SOBRE A DISSIDÊNCIA COMUNISTA

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O Zé Teixeira, lançou a bisca:

“Já agora, e discuti isso em tempos com gente desse movimento (sentido literal): custa-me compreender porquê o só então? Caramba, dez anos antes não tinha dado para compreender todo o mundo? E seria interessante saber o que incomodados como tu acham disso. Aqui entre nós ser comunista teria muito atractivo em Portugal nos 70s mas até eu que era putissimo soube do Veiga de Oliveira: que andavam vocês a pensar? É pergunta, nunca provocação. Ou seja é provocação para escritos ou para estas boas investidas blogojornalisticas.”

Isto, num comentário a propósito da dissidência da “Terceira Via” havida no final dos anos oitenta no PCP e tratada em posts anteriores.

A pergunta do Zé Teixeira podia-se colocar a todos e em todos os tempos. Aos que romperam quando da Hungria em 1956 (porque não romperam quando do pacto germano-soviético em 1939?). Aos que romperam em 1968 por causa da Checoslováquia (porque não o fizeram nos acontecimentos da Hungria?). E, nas tricas domésticas, também se pode perguntar aquilo que o Zé Teixeira questiona, como perguntar aos “renovadores” de agora se estavam a dormir na forma quando da “Terceira Via”. E esta mesma pergunta, talvez condenada a ser um mero questionar de retórica cíclica, poderá ser feita, mais dia menos dia, a alguns que não questionam hoje mas vão romper amanhã.

A questão do desencanto e da rotura tem circunstâncias, sentimentos e um jogo complicadíssimo de rompimento e de luto. É como nos divórcios, poucos serão aqueles que são decididos na primeira constatação da falta de sentido de uma co-habitação. A decisão de “cada um ir às suas”, quantas vezes aparece sobre um motivo aparentemente irrelevante mas em que é a gota de água que transborda o copo, aparece como momento da necessidade de lucidez? E surge na altura, naquela altura do tal pretexto menor, porque há margem racional para constatar o óbvio que não se viu nos momentos mais intensos e mais dramáticos de desacerto.

A vida num partido comunista, se a militância for séria e a sério, é uma espécie de vida substituta. Ali estão os nossos ideais, ali está o nosso sentido de servir, ali estão os melhores, os nossos amigos e os nossos heróis, ali estão os amanhãs que merecem tudo para se negar e compensar as misérias de hoje. Ali está o vermelho que ilumina os cinzentos da nossa impotência da sensação de pequenez face às forças que nos trituram e trituram os outros. Aquele microcosmos dá-nos a grandeza de sermos camaradas no Nós. Cada um é herói na sua dimensão de dar, ser e fazer, mimetizando-se com os melhores, os mais valiosos, os mais talentosos, os mais capazes. Eu limito-me a cobrar cotas mas sou tanto como o herói que sofreu torturas e não falou. Eu sirvo no bar de um Centro de Trabalho, mas sou tanto como o camarada que saltou as muralhas do Forte de Peniche. Eu vou levantar o punho na manifestação, mas sou tanto como o Camarada que fala na Televisão ou lidera o grupo parlamentar. Eu vou fazer claque para apoiar o último livro do camarada Saramago (Nobel!) e sendo seu camarada, sinto que poderia escrever os livros que ele escreve, ou que os livros dele têm um parágrafo que podia ser meu. Eu levanto o punho para Cunhal, e sou igual a ele. Ele é dos meus, eu sou dele.

Na minha geração, muitos entraram no comunismo porque era a única forma eficaz de se lutar contra o fascismo. A luta era com eles, eles eram a luta. O fascismo português construiu a grandeza relativa que o comunismo teve em Portugal. E se aqui ficou plantada uma das últimas e mais persistentes abencerragens do estalinismo serôdio, isso deve-se ao reflexo do irredentismo provocado pela rejeição ao bolorento salazarismo e de o PCP ter encontrado, em Cunhal, o génio capaz de construir um partido estalinista na fase terminal e posterior do estalinismo real. E ao facto de em Portugal, estarmos habituados e preparados para adoptarmos as modas que já estão caducas onde elas foram lançadas.

Romper com o PCP, para um militante comunista, é um acto doloroso. Muito doloroso. Não em termos políticos. Isso é o mais fácil, motivos não faltam, ali e em toda a parte. Mas, romper significa perder amigos, perder olhares cúmplices, perder as bússolas que nos orientam as leituras e os olhares, viver com a sensação de inutilidade dos melhores anos da nossa vida, habitar uma terrível sensação de termos sido demasiado estúpidos em demasiado tempo. É sentir que somos uma árvore com as raízes de fora da terra. E conseguir viver com isso. E ser capaz de fazer o luto. É um drama. E cada um procura fugir dos dramas. E das trevas. E da solidão. Continuar um jogo que nunca jogámos sozinhos. E que não se pode jogar sozinho.

O militante comunista é treinado a criar mecanismos de defesa das contaminações que perturbem a pax interna. Porque, lá, aprendemos cedo que o inimigo está fora e dentro. Confiamos nos nossos dirigentes para separarem, por nós e em nosso nome, o trigo do joio. Damos-lhe a confiança absoluta até a perdermos absolutamente.

Cada comunista dissidente tem a sua história própria, específica e irreprodutível. Porque a dissidência é o momento em que o Eu se confronta com o Nós. E essa especificidade, essa capacidade, ou essa incapacidade, é pessoal e intransmissível. O que surgem é circunstâncias em que o abuso e o absurdo da estupidez estalinista aglutinam não um mas vários. E então, só então, há um movimento do Basta.

Quando da dissidência dos “Seis”, eu não estava na hora do Basta, estava na hora do cerrar fileiras. Detestei-os. Aceitei a justificação de que aquilo era uma cambada de intelectuais vaidosos e sequiosos de ribalta. O Vital estava contaminado pela peneirice parlamentar. O Sousa Marques era um palerma armado aos cucos. O José Magalhães era caviloso. O Veiga, bem, o Veiga, esse era mais difícil engolir, o Veiga, bem, o Veiga, foram o Vital, o Sousa Marques e o José Magalhães, que lhe deram volta ao miolo. Siga a dança. A reacção não passará.

Depois veio a minha vez e a minha hora. Podia ter sido antes. Podia ter sido depois. Podia nunca ter sido. Foi a hora dos “renovadores” de hoje me darem no toutiço até chegar a hora deles levarem no toutiço. E haverá outros que se exasperam agora e são capazes de desprezar e insultar um homem com a envergadura intelectual e política de Carlos Brito, para lhes chegar, mais à frente, a hora do Basta. Mas a maioria nunca vai romper. Nunca vai renegar. Nunca vai renovar. Vão preferir envelhecer com a velhice do comunismo. Por cada lasca perdida nas fileiras, sentirão que são ainda melhores do que eram. Porque ficarão poucos, cada vez menos, mas bons, cada vez melhores. Até a abencerragem desaparecer, mas de punho levantado. Desprezaram o Vital Moreira, como eu o desprezei no tempo dos “Seis” (embora, tenha recuperado, relativamente a ele a mais elevada consideração), desprezaram o António Graça, desprezando-me a mim, desprezaram João Amaral e desprezam Carlos Brito, desprezarão os que se seguirem. Sentirão a grandeza do desprezo, sentir-se-ão melhores e mais purificados. Eu compreendo-os. Mas também me compreendo.

Explicado, caro Zé Teixeira? Ou é preciso pôr mais na escrita?

























publicado por João Tunes às 16:53
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6 comentários:
De João a 19 de Abril de 2004 às 13:10
Do escarafunchar do universo das "biografias", é que eu não saio. Não dou para mais. Dou testemunho e basta-me. Não falo em nome de outros, por falta de competência e de poder de representação. Mas talvez venha a falar da tal "reconstrução do Eu" de que fala o TP. (se e quando estiver para aí virado porque não quero que o PCP se transforme numa obsessão). Mas sempre no singular. O "esvoaçar", deixo-o para os académicos. Eles não existem para outra coisa. Abraços.


De João a 19 de Abril de 2004 às 12:57
Caro Marco.Com o ritmo das mudanças em que vivemos, fazer idealizações a 20 anos, é obra para profetas atrevidos, mister em que não me meto. O que fazer, já é outra questão. Mais afirmação do Ser e do Saber e menor consideração pelo Ter. Mais liberdade, mais democracia, mais diferença. Menor gap entre os Teres, em que o mínimo seja cada vez maior, obrigando os mais ricos a explicarem publicamente como "ganharam o primeiro milhão". Que os velhos se riam mais. Todas as prioridades para as crianças. Que a democracia evolua para o seu esplendor: sermos governados pelas nossas crianças, ou seja, a sua felicidade ser a única ditadura admitida e consagrada. Que a principal parcela das despesas do Orçamento do Estado quanto a Educação seja com a Pré-Primária e a Primária. Abraço.


De jpt a 19 de Abril de 2004 às 10:08
"Assim, tenho de ir por partes"...fico à espera.

1. vénia, belo texto
2. boa provocação do primo pinto, muito interessante
3. terrível essa de como imaginas o futuro que o marco te coloca, pois prende-se com 2.
4. eu também nunca sairia de lado nenhum se fosse na companhia do jose magalhaes
5. há uns belos tempo li um texto do pacheco pereira muito na linha deste que tu escreveste - entende isso como admiração positiva.
6. mas ... está tudo remetido para uma dimensão biográfica. e seria interessante sair daí, esvoaçar por cima das biografias, donde

"Assim, tenho de ir por partes"...fico à espera.


De Marco Oliveira a 19 de Abril de 2004 às 09:51
Então agora outra pergunta, não menos complicada: como idealizas o futuro deste país? Como gostarias que fosse a sociedade portuguesa dentro de 20 anos? O que podemos fazer para atingir esse futuro que idealizas?


De João a 18 de Abril de 2004 às 20:34
Mais essa e outras facetas da questão. Não tenho competência para ser exaustivo. Assim, tenho de ir por partes. Obrigado pelo contributo. Abraço.


De Teixeira Pinto a 18 de Abril de 2004 às 18:24
Considero a abordagem sincero, despudorada e honesta. Poucos seriam capazes de ser tão transparentes. Não quero dizer que a análise esteja incompleta, mas eu acrescentaria a esta abordagem um elemento importante que tem a ver com a dificuldade de um indivíduo reconstruir autonomamente todo o seu sistema cognitivo e de valores depois de tantos anos a depender de um sistema colectivo e despersonalizado (um sistema de pensamento em que o "nós" foi gradualmente anulando o "eu").


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